20 Julho 2023
"A velocidade atual do aquecimento coloca a humanidade na antessala de um aquecimento médio global de 2º C em relação ao período pré-industrial, com seus impactos catastróficos", escreve Luiz César Marques Filho, professor do Departamento de História da Unicamp, autor, entre outros livros, de Capitalismo e colapso ambiental (Unicamp), em artigo publicado por Jornal da Unicamp, e reproduzido por A terra é redonda, 18-07-2023.
A Convenção do Clima de 1992 morreu, é imperativo ressuscitá-la, redefini-la de modo muito mais radical, em suma, torná-la, enfim, efetiva.
Em 2017, a Organização Meteorológica Mundial (OMM) lançou o seguinte alerta:[1] “A taxa de aumento do CO2 atmosférico nos últimos 70 anos é quase 100 vezes maior do que ao final da última era do gelo. Até onde observações diretas e indiretas permitem afirmar, mudanças tão abruptas nos níveis atmosféricos de CO2 nunca foram vistas antes. (…) Registros geológicos mostram que os níveis atuais de CO2 correspondem a um clima de “equilíbrio” observado pela última vez em meados do Plioceno (3–5 milhões de anos atrás), quando o clima era 2°C a 3°C mais quente, o gelo da Groenlândia e da parte oeste da Antártida derretera e até parte do gelo da Antártica Oriental se perdeu, levando a níveis do mar 10 a 20 metros mais elevados que os atuais”.
Esse é o mundo que as atuais concentrações de gases de efeito estufa (GEE) estão recriando. Uma elevação do nível do mar de 10 a 20 metros não ocorrerá neste século, mas elevações entre 20 e 50 cm acima dos níveis de 2000, que devem ocorrer neste segundo quarto do século, já serão suficientes para inundar muitas regiões e cidades litorâneas nas marés altas, gerando milhões de refugiados climáticos.[2]
Muitos outros alertas se sucederam após 2017, incluindo o Relatório especial de 2018 e o Sexto Relatório de Avaliação do IPCC de 2021/2022, acerca dessa alteração antropogênica vertiginosamente rápida na composição química da atmosfera, reiterando o fracasso da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança Climática (UNFCCC[3]). O objetivo dessa Convenção, estabelecida na ECO-92, era estipulado em seu Artigo 2: “O objetivo último desta Convenção (…) é alcançar (…) a estabilização das concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera em um nível que evite interferências antrópicas perigosas no sistema climático”.
Os últimos 30 anos viram um aumento quase ininterrupto dessas concentrações, de tal modo que a esperança de evitar “interferências antrópicas perigosas no sistema climático” há muito se esvaiu. Em 1992, as concentrações atmosféricas dos GEE (ou CO2-equivalente) haviam atingido 430 partes por milhão (ppm); em 2022, elas alcançaram 523 ppm, um aumento de cerca de 20% em 30 anos, e estão aumentando desde 2018 à taxa média de 4 ppm por ano.[4] As concentrações atmosféricas apenas de CO2 precisam descer a 350 ppm se quisermos um sistema climático estabilizado, mas estão aumentando de modo cada vez mais rápido.
Em maio de 2021, elas atingiram 419,13 ppm; em maio de 2022, 420,99 ppm e, em maio de 2023, 424 ppm, um salto, portanto, de cerca de 3 ppm em relação aos últimos 12 meses.[5] Em consequência disso, a partir de 2016, o aquecimento médio global entrou em uma segunda fase de aceleração, passando de um ritmo de 0,18 oC por década (1970 – 2015) para 0,36 oC por década (2016-2040).[6] A velocidade atual do aquecimento coloca a humanidade na antessala de um aquecimento médio global de 2º C em relação ao período pré-industrial, com seus impactos catastróficos.[7]
Bill McGuire resume bem o consenso científico a respeito do que os anos 2025-2050 nos reservam, se mantida a atual trajetória:[8] “Não duvidem de que um aquecimento acima de 1,5 °C verá o advento de um mundo atormentado por intenso calor estival, seca extrema, inundações devastadoras, colheitas agrícolas declinantes, rápido derretimento das camadas de gelo e elevação do nível do mar. Um aumento de 2 °C ou mais ameaçará seriamente a estabilidade da sociedade global”.
Não obstante o fracasso redundante da Convenção-Quadro de 1992, há ainda quem acredite que as emissões antropogênicas de gases de efeito estufa vão, enfim, começar a diminuir num futuro discernível. Quanto menor a credibilidade das promessas dos governantes e das corporações, maior é a credulidade requerida dos que nelas depositam suas esperanças. As duas próximas COPs parecem condenadas ao mesmo fracasso das 27 anteriores. A COP28 em 2023 terá por sede os Emirados Árabes Unidos e será presidida por Sultan Al Jaber, CEO da Abu Dhabi National Oil Company (ADNOC). Trata-se de um insulto ao objetivo da Convenção de 1992, pois apenas entre 2022 e 2026 o portfólio de investimentos já decididos por essa corporação estatal em exploração de petróleo e gás monta a US$ 127 bilhões.[9]
Sua meta, fixada em julho de 2022, é aumentar em 25% sua capacidade de extração de petróleo até 2030.[10] A COP 29 terá provavelmente por sede a Austrália, país que é o 5º maior produtor de carvão, o 2º maior exportador e o 3º maior em reservas desse combustível no mundo.[11] A Austrália ostenta registros recorrentes de obstrução às tentativas de progresso nas negociações travadas nas COPs anteriores.[12]
Publiquei um artigo no Jornal da Unicamp em 13 de dezembro de 2022 intitulado “A Convenção-Quadro do Clima morreu. E agora?”[13] A resposta a essa pergunta continua a mesma: permanecer nessa trajetória de fracasso da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança Climática não é uma opção. Dado que não há à vista qualquer proposta substitutiva da Convenção do Clima de 1992, é imperativo ressuscitá-la, redefini-la de modo muito mais radical, em suma, torná-la, enfim, efetiva.
E eis que, subitamente, se apresenta a oportunidade de ouro para resgatar, na 25ª hora, a Convenção do Clima. Em 26 de maio de 2023, a candidatura do Brasil apresentada pelo governo Lula à ONU foi acolhida, o que representa uma vitória importante desse governo. Uma COP no coração da Amazônia nunca aconteceu. Seu significado se situa nas antípodas das duas próximas COPs, sediadas em países geridos pela indústria fóssil. Por certo, essa vitória implica uma missão gigantesca, de longe a mais importante deste governo para o presente e o futuro imediato da humanidade e de milhões de outras espécies.
No estado atual das negociações, o governo Lula e a diplomacia brasileira têm por missão levar as delegações dos países signatários da Convenção do Clima a assumir cinco compromissos legalmente vinculantes e muito mais audaciosos do que os propostos no Acordo de Paris:
(i) Diminuir imediatamente as emissões de GEE, de modo a aumentar as chances de adaptação humana e de outras espécies ao já inevitável aquecimento de 2º C até meados do século. Diminuir imediatamente essas emissões nunca esteve na pauta das 27 COPs precedentes, não estará nas duas próximas e é o ultimato do IPCC em seu Sexto Relatório de Avaliação, para evitar um planeta inabitável em latitudes cada vez mais amplas.[14]
(ii) Diminuir imediatamente o desmatamento das florestas, sobretudo das florestas tropicais, e zerar esse desmatamento até no máximo 2030. O desmatamento mereceu uma menção pífia no Acordo de Paris (COP21) de dezembro de 2015. Seu Artigo 5 afirma que as partes “deveriam” (should, ao invés de shall) agir para conservar e aprimorar os sorvedouros e reservatórios de GEE e “são encorajadas a agir” no sentido de adotar políticas e incentivos “relacionados à redução de emissões provenientes do desmatamento e da degradação das florestas”. É ridiculamente insuficiente. É preciso um tratado global draconiano contra os desmatadores.
O desmatamento tropical é causado sobretudo pela pecuária bovina e pelos cultivos da soja, notadamente para ração animal, e do óleo de palma frequentemente para alimentos ultraprocessados, em suma, por um sistema alimentar corporativo, extremamente globalizado, baseado em proteínas animais e em alimentos com baixo teor nutritivo. Esse sistema é responsável por cerca de um terço das emissões de GEE.[15] Sim, um terço! Os cientistas demonstram que, mesmo sem as emissões provenientes da queima de combustíveis fósseis, as emissões de GEE provenientes apenas desse sistema alimentar disfuncional tornariam impossível limitar o aquecimento nos níveis almejados pelo Acordo de Paris.[16]
(iii) Estabelecer inventários nacionais realistas de emissões antropogênicas de GEE. Um preceito básico da ciência é o de que só se pode conhecer, prever e, portanto, gerir o que se pode medir. Os países não estão notificando corretamente à ONU as mensurações de suas emissões líquidas antropogênicas. A envergadura global dessas discrepâncias entre as emissões reportadas pelas Partes da UNFCCC e as emissões antropogênicas reais foi recentemente revelada por um estudo realizado pelo jornal The Washington Post, segundo o qual há “uma gigantesca discrepância entre as emissões de GEE declaradas pelas nações e o que de fato elas estão enviando para a atmosfera. A discrepância varia entre pelo menos 8,5 bilhões a 13,3 bilhões de toneladas por ano de emissões subnotificadas — algo grande o suficiente para mover a agulha sobre o quanto a Terra vai aquecer”.[17]
(iv) Arrancar o cumprimento imediato das promessas e compromissos assumidos nas COP15 e 16 (2009 e 2010) pelos países desenvolvidos de “mobilizar conjuntamente US$ 100 bilhões por ano até 2020 de uma ampla variedade de fontes, públicas e privadas, bilaterais e multilaterais, incluindo fontes alternativas, para atender às necessidades dos países em desenvolvimento, no contexto de ações de mitigação significativas e transparência na implementação”.[18] Esse acordo jamais foi cumprido pelos países ricos[19] e está bloqueando as negociações climáticas, como bem mostrou o fracassado encontro de junho em Bonn, preparatório da COP28.[20]
(v) Tornar efetivo o chamado Mecanismo Financeiro de Perdas e Danos (The Loss and Damage Finance Facility), em complementação aos US$ 100 bilhões anuais prometidos para os esforços de mitigação e de adaptação dos países pobres. Esse mecanismo voltou à tona na COP27, após o Plano de Ação de Bali no âmbito da COP13, em 2007, e após a COP19, em novembro de 2013.[21]
Essa quíntupla missão é factível? Provavelmente, não. Mas ela só terá alguma chance de êxito se tiver a seu favor uma mobilização e uma pressão muito mais vigorosas da própria sociedade nas tomadas de decisão, não apenas nessa COP, mas nas sucessivas e em todos os níveis de governança, inclusive no âmbito mais alto da ordem jurídica global. O governo Lula nada fará sem essa mobilização. Ele precisa que a sociedade o apoie, o pressione e o encoraje a afrontar tais desafios.
A sociedade brasileira, de seu lado, não está percebendo a importância crucial dessa mobilização. E aqui entra a verdadeira função e principal razão de ser da Universidade em nossos dias: educar para as duras realidades da emergência climática. Esta deve ser abordada em termos científicos, mas também e sobretudo como o maior desafio político, intelectual e espiritual de nosso tempo. Além disso, deve ser compreendida como parte de uma ampla emergência socioambiental, pois a crise climática é indissociável de três outras crises sistêmicas e em aceleração: a aniquilação da biodiversidade, a poluição industrial e o abismo das desigualdades econômicas, sociais, raciais, de gênero etc. Essas quatro emergências – clima, biodiversidade, poluição e desigualdades – amplificam-se reciprocamente e exprimem em seu conjunto uma crise da democracia, uma crise do capitalismo e, mais amplamente, uma crise de civilização.
Nos próximos dois anos, a Universidade pode e deve se juntar a outras forças sociais – movimentos populares, ONGs, partidos políticos, igreja etc. –, no sentido de preparar essa mobilização, mas pode e deve também assumir iniciativas próprias, intensificando a educação científica e socioambiental dentro e fora dos muros da Universidade, através de cursos híbridos (presenciais e online), podcasts, portais na internet, sempre com uma linguagem atualizada e o mais acessível possível. Eis, apenas a título de exemplo, uma grade possível de temas dessa tarefa de educação científica e política:
Há muitas instituições e organizações com objetivos convergentes com esta proposta. A título de exemplo, em âmbito político-partidário, pode-se evocar a Frente Parlamentar de Combate às Mudanças Climáticas, composta por 27 deputados estaduais de São Paulo, lançada na Alesp com grande êxito em 29 de maio. Há possibilidades de trabalho conjunto com instituições como o Ministério do Meio Ambiente e Mudança Climática, ICMBio, INPE, CEMADEN, e com organizações como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o Instituto de Proteção Ambiental (PROAM), Observatório do Clima, De Olho nos Ruralistas, Instituto Socioambiental, o Fórum Social Pan-Amazônico (FOSPA), a Assembleia Mundial pela Amazônia (AMA) etc.
No âmbito das instituições religiosas, pode-se trabalhar em conjunto com as equipes engajadas no trabalho de divulgação da Encíclica Laudato Si’, da Rede Eclesial Pan-amazônica (REPAM), do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) etc. Outras Universidades estaduais e federais podem acolher propostas educacionais conjuntas. Esses são apenas alguns exemplos de um leque de possibilidades de cooperação e articulação que ajudarão a Universidade a fortalecer sua atuação científica na sociedade e a se fortalecer nesse processo.
[1] Cf. WMO Greenhouse Gas Bulletin, 30/X/2017.
[2] Cf. William V. Sweet et al., “Global and Regional Sea Level Rise Scenarios for the United States”. NOAA, Technical Report NOS CO-OPS 083, 2017, p. 23, Tabela 5
[3] Veja United Nations Framework Convention on Climate Change (UNFCCC)
[4] Cf. National Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA), Annual Greenhouse Gas Index 2022 (Índice Anual dos GEE da National Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA/AGGI), Primavera de 2023.
[5] Veja-se “CO2-earth”
[6] Cf. James Hansen & Makiko Sato, “July Temperature Update: Faustian Payment Comes Due”. 13/VIII/2021
[7] Cf. Michael Mann, “Earth Will Cross the Climate Danger Threshold by 2036”. Scientific American, 1/IV/2014; “When might the world exceed 1.5C and 2C of global warming?”. Carbon Brief, 4/XII/2020.
[8] Cf. Bil McGuire, Hothouse Earth, Icon Books, 2022, pp. 26-27.
[9] Cf. Archana Rani, “ADNOC to invest up to $ 127bn between 2022 and 2026”. Offshore Technology, 2/XII/2021.
[10] Cf. D. Saadi, “ADNOC to pursue more foreign investments”. S&P Global, 13/VII/2022.
[11] Cf. Australian Government, Coal
[12] Cf. Adam Morton, “Australia is pushing to host a COP meeting”. The Guardian, 18/IX/2022.
[13] Cf. Convenção quadro clima morreu e agora?
[14] Na realidade, para o IPCC, essa data-limite deve ser “antes de 2025”. Cf. IPCC, Sixth Assessment Report 2022, Working Group III – Mitigation of Climate Change, 5/IV/2022, Summary for Policymakers, p. 21.
[15] Cf. Francesco N. Tubiello et al., “Greenhouse gas emissions from food systems: building the evidence base”. Environmental Research Letters, 8/VI/2021; EDGAR, European Commission.
[16] Cf. Michael A. Clark et al., “Global food system emissions could preclude achieving the 1.5° and 2°C climate change targets”. Science, 6/XI/2020.
[17] Cf. Chris Mooney, Juliet Eilperin, Desmond Butler, John Muyskens, Anu Narayanswamy & Naema Ahmed, “Countries’ climate pledges built on flawed data, Post investigation finds”. The Washington Post, 7/XI/2021; Carlos Bocuhy & Luiz Marques, “Estudos mostram que o aquecimento global pode estar subestimado”. Le Monde Diplomatique Brasil, 18/IV/2023.
[18] Cf. UNFCCC, “Roadmap to US$ 100 billion”.
[19]. Cf. J. Timperley, “The broken $100-billion promise of climate finance — and how to fix it”. Nature, 20/X/2021.
[20] Cf. Zia Weise, “Divisions deepen at Bonn climate talks amid UAE leadership vacuum”. Politico, 15/VI/2023; “O que aconteceu (e o que não aconteceu) na Conferência do clima de Bonn”. Observatório do Clima, 16/VI/2023, originalmente publicado em Laclima.
[21] Cf. Lívia Preti Boechat & Wagner Costa Ribeiro, “O Mecanismo Internacional de Varsóvia para Perdas e Danos: uma análise de seu primeiro ciclo”. Desenvolvimento e Meio Ambiente, 58, 2021, pp. 830-849.
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A missão da COP 30. Artigo de Luiz César Marques Filho - Instituto Humanitas Unisinos - IHU